Até a próxima estação.

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Posted by Felipe Luna | Posted in | Posted on 18:27


Deixa eu desligar da saúde. Dela, dos fatos e dos casos. Deixa eu pensar que essa dor vai passar quando eu voltar a tomar qualquer coisa que tenha você na fórmula de composição. Deixa eu achar você na bula em qualquer parte que não seja nas contra-indicações, porque, segundo a receita, eu ainda preciso de suas doses para sorrir. Eu nem sei quanto me custou deixar você ir, mas deixei. Deixei o normal para trás, porque ele já estava andando de mãos dadas conosco de cima a baixo, cada vez tropeçando menos.


Deixa eu desligar do óbvio, porque das nossas músicas eu não vou desligar não. Não vou deixar para lá as músicas que nós levávamos a todo lugar, como se fossem extensões do que não podíamos sentir toda hora. Deixa soar ainda aquela voz, violão e caprichos, que sempre foram do meu gosto, porque só pessoalmente eu senti coisa melhor nos ouvidos. Um suspiro. Enche os pulmões, agora esvazia. Eu sorria, como sempre e para tudo.


Deixa eu pensar que você vai me comprar um sorvete, e eu prometo que não me sujo mais como uma criança. Ou melhor, você iria preferir que eu fosse uma criança sim, e me olharia de novo com aquela expressão de que não acredita no que vê. Viraria os olhos e tiraria a sujeira de cima de mim. Tira mesmo de mim essa sujeira, e tira o que mais você quiser tirar. Nós não fizemos mais as honras como seria de bom tom.


Deixa eu me controlar. Não vou mais acabar com o seu direito de dormir, com a sua vida acadêmica, nem com a malhação diária. Eu não vou mais acabar com nada, porque o que eu tinha que acabar, já o fiz.


Deixa só eu te escrever uma carta. Vou botar nas linhas o carinho que eu fazia na sua cabeça enquanto você deitava no meu peito. Vou botar numa ou outra palavra o cheirinho da minha pele que você gostava. Deixa eu achar que você vai levar ele consigo. Vou usar uma ou outra metáfora para você lembrar toda a rede semântica que já nos envolveu. E vou extrair em qualquer jogo de palavras uma harmonia daquelas que nós só víamos nos nossos filmes preferidos. Principalmente aquele que nunca conseguimos ver juntos e que nos agradava tanta quanto os nomes simples. Elisa, Bete, e tal...


Deixa eu ir pegar seu endereço. Se eu não achar, eu envio para um jardim, um parque. Eu mando por um barão qualquer, desde que ele não tenha nenhum mal. Ah, mas tem que ser um que ande de trem e saiba bem a estação que deve descer. Exatamente como eu espero estar sabendo agora.

Véspera

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Posted by Felipe Luna | Posted in | Posted on 20:06


Caminhou tão compenetrado na contagem das folhas secas naquele chão impregnado por passos dos que já foram engolidos pela mesma terra, que nem tomou ciência do caminho leste pelo qual deslizavam seus pés ainda macios de uma vida fácil. Teve ali uma oportunidade de ruminar as teorias que já havia ingerido desde a época da mula-sem-cabeça, quando vovó lhe repetia com orgulho e sem fadiga que os pés rachados eram sinais de insucesso. Gozadores do movimento dos astros, das boas magias de qualquer catimbozeiro, ou da água benta pelo pároco do distrito, eram aqueles que mantinham seus pés finos e sedosos, como sinal de que nunca precisou colocá-los em atrito com o chão imundo e profano para conseguir o sustento.
No final desta lembrança, quando uns quinze passos de pés descalços já haviam levado seu corpo consideráveis metros adiante, pensou em como a teoria dos pés virgens tinha certa razão. O curioso, porém, era acreditar que o privilégio de uma vida fácil passasse necessariamente pela ausência de trabalho árduo. Imaginou a criação do mundo e do julgamento das almas pecadoras. Aquelas que precisavam pagar pelos pecados, voltariam como trabalhadoras de pés descalços. As demais estariam sob as graças de não tocar a imundice dos pecadores. De não se misturar com o que não era humanamente divino.

Chegou ao destino sem demorar muito. Ali demorou umas três passagens de vento só pensando em como as pessoas gostam de se manter imponentes mesmo quando os corpos não têm mais fagulha de vida. Sua avó era um modelo exemplar. Passou a vida cultivando os pés e agora tinha até a cabeça por baixo de onde nunca quis pisar. Constroem com mármore as mansões eternas, e por dentro nada podem fazer para evitar o podre. Inspiração pesada. Coceira no nariz. Cheiro de saudade. Deixou de lado as reflexões. Achou que já era hora.

Fez então o que o rumo leste quase involuntário, quase inconsciente, lhe solicitava para fins de razão. Tão cuidadoso como se deposita pomada em peles feridas, na mesma harmonia e compasso dos dedos disciplinados na composição da nota num violão, repousou com alívio inegável, e até vergonhoso se o fizesse há outonos anteriores, aqueles sapatos. Não espere o leitor que haja uma descrição mais detalhada desse pedaço de material relativamente duro e com brilho no exterior. Era apenas um sapato, como outro qualquer. Desses que se usa com calças formais. Desses que o leitor certamente tem em sua coleção. Sua avó praguejar-lhe-ia umas cinco moléstias antes que fizesse em metros poucos suspiros. Mas o fez, e só ouviu uns dois arbustos inquietos com o ar em movimento se esfregando por entre eles. Talvez sua avó tivesse aquela manifestação para repreender os pés agora definitivamente descalços. Por motivos de conveniência, acreditou que arbustos em polvorosa fossem apenas o que se vê e o que se ouve. Tão simples como os sapatos que deixara para trás sobre o mármore de interior podre.

Agora poderia machucar a pele fina dos calcanhares com os caminhos livres. Se não fossem as milhas já planejadas, seria provável que a liberdade total combinasse mais com o final dessa história. No entanto, não é. Conferiu mentalmente se havia deixado tudo o que queria dentro dos sapatos largados há instantes. Lembrou dos preceitos obsoletos que deixou junto às meias gastas. Disso teve prazer. O que não teve prazer foi da solidão de cheiro tão confortável que forçadamente deixou sobre o mármore. Essa não poderia mais levar consigo, embora fosse tão desejada.

Tocou com os próprios dedos o metal circular de ouro que carregava na mão direita. O mesmo que trocaria de lugar assim que chegasse ao seu destino. Os seus pés descalços trabalhavam para isso agora. Calo após calo.

Inspiração

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Posted by Felipe Luna | Posted in | Posted on 00:29


O Leitor nem se incomode com o aroma imponente de ambiente guardado pelo qual já é caracterizado esse divã. Até as eventuais rinites que possam ser suas companheiras fiéis já criaram uma relação íntima com o cheiro que invade ao se abrir este espaço tão hermético por um tempo deveras inconveniente. Não que tivesse sido esse o fato motivador de tamanha ausência. Proporcionar essa experiência olfativa certamente não foi o objetivo primeiro desse que o fala. No entanto, seja talvez de interesse do Leitor a consciência de que o olfato marcou uma hora nesse divã de aromas tão misturados.

Note o Leitor próprio que nem sequer o cheiro de uma cadelinha acompanhada de um senhor milionário que já deram a graça de suas aparições por aqui no ano passado está munido do poder de abafar o deste Senhor sensível que acaba de cruzar a porta de tal sala escura. E seguem na mesma impotência o cheiro do café já tomado, o cheiro nórdico trazido por um velhinho barbudo para terras tupiniquins, o das mexericas que uma menina já retirou da árvore, do suor misturado com hipocrisia que invadiu este espaço no carnaval, tampouco o do sol que não deixa de dançar por aqui. É um aroma forte e nada parecido com os já vividos que esse Senhor de aparência tão insignificante carrega como uma áurea de um lado a outro do espaço que ocupa. Se me saísse uma descrição de suas roupas, feições e porte físico, seria ela toda sem verdade. Não foi me dada oportunidade de dispensar atenção nesses fatos que se tornaram agora detalhes.

Pois saiba o Leitor que depois de sentar, “inspire” foi a primeira palavra jogada ao ar pelos lábios ainda com odor do cigarro que o Senhor fumou há dias. Mesmo que não fosse essa a pretensão, as letras chocaram-se produzindo um cheiro agradável, familiar àqueles que trazem para si a seleção do melhor que as narinas podem receber. Um cheiro que preenche o que antes parecia intransponível e vai se multiplicando na medida em que mais espaço vai sendo aberto. No começo, o que era apertado e escuro, começa a ser decorado com um conteúdo lustroso, capaz de, acredite o Leitor mais cético, ter luz própria.

A iluminação, por sua vez, vale um cuidado apurado na combinação de letras ordinariamente exportadas por aqueles lábios que agora cheiravam ao cigarro que acendeu há pouco. “Troque” foi o que ele disse depois. E por aí foi possível sentir o cheiro da poeira levantada pelo galopeio das letras em direção uma da outra, fazendo numa proporção molecular o que era bom passar para o lado que interessa, e o que era ruim subir para ser restaurado. Nesse momento – ele nem precisou explicar – o Leitor pode absorver que nada considerado descartável está necessariamente destinado à inutilidade absoluta.

E veio como final de um filme clichê a terceira palavra. “Expire” foi tão bem pronunciada que tornou possível extrair um aroma divino do som das letras caminhando uma atrás da outra. Esses passos foram saudando o cheiro de conquista. Uma explosão de consciência e de luzes diversas experimentada no orgasmo de quem acabou de parir. Longe de um alívio. Perto de uma esquina que ao ser dobrada a maratona termina. Porque foi de tanto correr que se chegou a sentir o cheiro da chegada. E para superar os gritos de quem torce na calçada pela conquista do que corre, é feito o convite de ler o parágrafo que segue em voz alta.

Ele inspirou depois de correr quando sentiu que o ar lhe faltou no exato instante em que a maratona estava perto de lhe dar a glória da real troca de valores do que é certo e errado cada vez mais imprescindível pra quem não quer deixar passar suas idéias pela lama composta de água com futilidade e um pouco da falta de senso do ridículo para dar consistência a esta substância ainda não evitada por todos que pensam depois de inspirar na mesma proporção que expiram depois de pensar.

“Se a você faltou fôlego, inspire novamente para sentir”. Foi essa a única frase completa que o Senhor desfilou antes de anunciar sua saída.

O Sol de Montebelo.

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Posted by Felipe Luna | Posted in | Posted on 13:28


Não é que os olhos de eufemismos mais suaves que ela carrega no rosto sempre iluminado não me encantem por si só. Mas a forma como eles gritam sempre afinados buscando numa prosopopéia meio distante e aliterações nunca abusivas uma forma de chamar minha atenção para o fato de estarem ali a espreita, como dois holofotes que dão a luz e a graça para o artista nem sempre de sorriso espontâneo no palco, não me deixam menos feliz do que outra coisa.

Não é que seja ela uma parte da platéia que aplaude sempre de pé no fim do espetáculo. É que ela faz isso com um sorriso que não se vê parecido lá de cima, e que enriquece o valor das lágrimas ácidas derramadas no palco que tem mais forma de divã do que outra coisa. E como se possível fosse trazer o sol para escuridão dessa sala onde as letras saem soltas com combinações sufocadas, ela o faz livre e naturalmente porque ainda não descobriu que isso é impossível.

O poder do sol vai além de tornar às vistas possível enxergar o que está perto ou longe. Desfigurar o gelo que cobre as ideias e as emoções tal qual o vento vai transformando em estado mais nobre as gotas de água paradas sobre qualquer coisa, não lhe é uma tarefa atribuída que se deve ignorar. É porque, explica o artista despretensioso, só quando se torna líquido o que antes era sólido, a matéria-prima de que é feita esse divã dá mais liberdade para moldar e brincar com as formas e volumes que enchem os olhos de quem por aqui respira. Sem falar que também são líquidas as tintas colorantes das telas que dançam pra lá e pra cá nesse balé sem sincronia clássica.

Não é que ela dance por aí desengonçada jogando sem motivo e sem beleza os bracinhos tão curtos acompanhando os movimentos das pernas torneadas. Mas ela sabe conduzir o coreógrafo com os seus passos inventados espontaneamente quando a música é solta. Porque são nos seus palpites e comentários tão gentis que o artista se movimenta para conduzir a dança das letras. E o faz de forma a não cortar o ar do ambiente sem um propósito comprometido com o belo e com o significado. Ela não deixa uma nota musical desacompanhada de um movimento perspicaz.

E se sol for essa nota, ela não se deixa sair da afinação e canta também com um timbre que não se ouve parecido no coro. Ela sabe que do sol esta sala precisa, porque as paredes não ecoam coisa melhor que não essa nota que nunca cai. O sopro da flauta e as cordas do violão só ajudam a segurar o sol como instrumentos de uma orquestra que não para nem quando o público já foi embora.

Nem mesmo quando o público sai sem aplaudir.

Isso aqui só é menos frequente do que ocorre nas salas de cinema. Depois de reproduzido o último centímetro da fita de ilusões, todos saem diferentes do que entraram, mas nem sempre deixam a marca disso como agradecimento. O que nem faz tanta diferença quando é possível ver na trama que a mocinha e o herói são uns medíocres perto dela, que pode ser boa e má ao mesmo tempo. Ela pode ainda desfrutar como ninguém dos enquadramentos e das cores mais vanguardistas porque tem sensibilidade para perceber todo o roteiro de forma privilegiada.

Não que ela tenha um camarote acima dos outros. Mas o lugar dela sempre esteve reservado no script. É que no fundo de todas as cenas, compondo a fotografia dos quadros, existe um sol que nem sempre é visto.

É o Sol de Montebelo.

Tirando o Couro no Carnaval.

9

Posted by Felipe Luna | Posted in | Posted on 12:01



É depois de quase dois meses de jejum desse espaço que eu manifesto o meu desejo de não ter perdido, o leitor distanciado, o gosto pelo couro que reveste esse Divã. Não que seja ele de mau agrado, mas que foi ausente por um tempo nunca visto desde as primeiras linhas derramadas nesse espaço de divagações. Já compreendo até que as areias e o sol do verão tenham o feito dispensar o calor que daqui abunda (a acidez e o sarcasmo nós vamos desprestigiar de citações para fins de cordialidade). Todavia, agora que fevereiro já dá sinais de intimidade, é hora de a prole desse Divã despir seus objetos mais preciosos – e caros – para se acomodar nesse couro impiedosamente arrancado dos comedores de piranha.

Seria de uma demonstração irrevogável de elegância que o leitor mais freudianamente afetado retirasse da cabeça os pensamentos malévolos e aceitasse “comedores” como “predadores” e lembrasse que às vezes uma piranha é apenas uma piranha. Sendo desta forma, não me espanta que minha orelha esquerda esteja tão rubra devido às palavras pouco carinhosas dos ambientalistas ferrenhos e dos igualmente socialistas – esses não precisam de uma causa muito interessante pra meter o bedelho, em qualquer piranha eles já estão metendo – afinal é sobre couros de jacarés que mantenho meus pensamentos.

Personagens tão ilustres como piranhas, jacarés e socialistas fazem visitar a minha cabeça, acredite o Leitor, pensamentos carnavalescos. É curioso que numa festa marcada por situações extraordinárias, já que o trabalho sempre considerado como castigo dá o prazer de sua ausência e leva dentro de uma mala todas as demais regras onipresentes durante todo o ano, seja submetido a uma data e uma hora rigidamente definidas para acontecer. Como se o período de não-regras estivesse submisso a uma regra severa. O cúmulo da disciplina num período que a abomina.

Não que seja esse o fato mais curioso, afinal ainda nem metemos os socialistas na folia. E é mesmo para não dar tempo que algum se levante e comece um sonífero discurso de libertação, eu convido o Leitor a lembrar-se do dia em que viu o um bloco de carnaval puxado por um desses seres pensadores. Tão estranho como a presença massiva de uma sociedade que despreza a mobilidade social numa festa que promove o desafio das coisas fora do lugar, é a ausência dos defensores da igualdade nessa folia.

Enquanto os confetes são jogados e as serpentinas fazem vôos rasantes pelas cabeças ornamentadas, a hierarquia e a posição social são desprezadas como um detalhe sem importância no meio da fraternidade desmedida e da liberdade de fazer o que quiser sobre a proteção da compreensão alheia. Tudo pode. Até a periferia toma conta do espetáculo e desfila pomposamente suas tradições para o deleite de todos. Esses que passam o ano como coadjuvantes da máquina que leva o país, por esses dias protagonizam o maior espetáculo popular por aqui visto. E onde sai o bloco dos socialistas pra comemorar esse feito?

Já até posso ver Rousseau desfilando na velhíssima guarda de alguma escola de samba, - caso ainda andasse por aí espalhando o típico perfume francês – com os dedinhos pra cima e gritando: “Liberté, Egalité, Fraternité!”. Ele não sentiria a menor falta do Moulin Rouge, já que as piranhas daqui são bem mais despidas. De tecido e de pudor. Essas que aceitam tal posto só se vestem do próprio couro. O do jacaré, só se for pra pegar. É bem por aí que o Leitor pode presenciar uma típica exceção à filosofia. Para Marx, como bom jacaré que provavelmente era, acredito que mais valia duas piranhas do que um manifesto.

São nas relações piranha/jacaré que os socialistas até são capazes de rever seus conceitos.

Liberdade é libertinagem. Igualdade é desprezível. Fraternidade? Ah, fraternidade um cacete!


Menina que Pintava o Tempo

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Posted by Felipe Luna | Posted in | Posted on 11:45


Há tempos, para ela, a passagem do próprio tempo não merece mais comemorações de aniversário. Deitada ali sob a mangueira inexistente no seu quintal, ela ia pintando na imaginação com todas as cores possíveis o que ainda não podia ver. Preenchia agora 12 mangas progressivamente maduras que a ela lembravam sabores já provados, e mais 12 que ainda não existiam, mas sabia ela que estavam para nascer. Podia contar também umas trezentas e sessenta e cinco folhas caídas ao seu redor, num chão que a sua imaginação ainda não havia decidido se era de barro ou não.

Ela se lembrou de cada folha que caiu e nunca mais poderá ser colocada de volta. Sabe que ali no chão elas levam consigo a vida da utilidade, mas ainda servem para serem vistas e lembradas, até quando o esquecimento tratar de decompô-las. Nesse instante ela olhou para aquelas ainda não nascidas, mas destinadas a cair, uma a uma, até que as mangas que também nem existem fiquem todas maduras. Pôde sentir toda a esperança que tomava conta dela sem se acanhar com nenhum tipo de educação ou bons modos que viesse frear a veemência do que estava por vir. Os momentos que acompanhariam a caída de cada folha, da mesma forma como um corpo de baile acompanha harmoniosamente a música, não saíram da sua cabeça, nem tampouco remediaram a ansiedade que passa a ser sua companheira fiel nesta época.

Fez planos, previsões, bordados. Reflexões e pedidos redobrados.

Refez os planos pela décima segunda vez em menos de doze segundos. Mas isso pouco importava, já que a preocupação maior era remover aqueles tons de cinza que ainda cobriam inconvenientemente as coisas que não tinha pensado. De cinzento seu tempo já cansou de ser. De cinza suas datas já estavam encardidas. Da cinza que restaram os motivos, não há mais nem um sopro de vida. Mas é a vida que sopra para frente fazendo-a sentir necessidade de colorir o que ainda lhe resta. E com o cheiro dessa mesma tinta que o vento vai soprando, faz de um soprano o canto desse ruído.

Traçou caminhos, trilhas, encruzilhadas. Linhas finas, curvas e acertadas.

Enxergou numa fresta de luz do sol que passava por entre os galhos da mangueira, a mangueira que não existia, o medo de seguir pelos caminhos mais escuros. Lembrou aí que o que carregava consigo eram apenas pincéis e tintas. Luzes não estavam na sua caixinha de possibilidades. Isso foi importante para ela perceber que pode tudo, mas tudo não. Ela tratou então de escolher cores mais claras para manter com vida e com brandura o colorido dos caminhos. Aprendeu que usar dégradé ajuda a criar meio termos. E meio termos são importantes pra chegar a um lugar comum.

Ela aceitou a bipolaridade e preferiu sair do chão, que há um pincel de tempo decidiu não ser de barro por falta de tinta marrom, e ficou trepada em cima do muro para ver mais folhas caírem, sempre verdes da esperança que carregam consigo. Ela teve a idéia de pintar uns carneirinhos, uns porcos, umas galinhas. Uma porta, uma porteira e um portão. Transformou as mangas em mexericas e sentiu vontade de devorá-las uma a uma como se fossem a última. Só assim ela percebeu o quão quentes ficavam as caídas das folhas, o quão bonitas ficavam o gosto das laranjas, e o quão doces ficavam as vozes afinadas do vento no ano que pede permissão para passar.