Véspera

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Posted by Felipe Luna | Posted in | Posted on 20:06


Caminhou tão compenetrado na contagem das folhas secas naquele chão impregnado por passos dos que já foram engolidos pela mesma terra, que nem tomou ciência do caminho leste pelo qual deslizavam seus pés ainda macios de uma vida fácil. Teve ali uma oportunidade de ruminar as teorias que já havia ingerido desde a época da mula-sem-cabeça, quando vovó lhe repetia com orgulho e sem fadiga que os pés rachados eram sinais de insucesso. Gozadores do movimento dos astros, das boas magias de qualquer catimbozeiro, ou da água benta pelo pároco do distrito, eram aqueles que mantinham seus pés finos e sedosos, como sinal de que nunca precisou colocá-los em atrito com o chão imundo e profano para conseguir o sustento.
No final desta lembrança, quando uns quinze passos de pés descalços já haviam levado seu corpo consideráveis metros adiante, pensou em como a teoria dos pés virgens tinha certa razão. O curioso, porém, era acreditar que o privilégio de uma vida fácil passasse necessariamente pela ausência de trabalho árduo. Imaginou a criação do mundo e do julgamento das almas pecadoras. Aquelas que precisavam pagar pelos pecados, voltariam como trabalhadoras de pés descalços. As demais estariam sob as graças de não tocar a imundice dos pecadores. De não se misturar com o que não era humanamente divino.

Chegou ao destino sem demorar muito. Ali demorou umas três passagens de vento só pensando em como as pessoas gostam de se manter imponentes mesmo quando os corpos não têm mais fagulha de vida. Sua avó era um modelo exemplar. Passou a vida cultivando os pés e agora tinha até a cabeça por baixo de onde nunca quis pisar. Constroem com mármore as mansões eternas, e por dentro nada podem fazer para evitar o podre. Inspiração pesada. Coceira no nariz. Cheiro de saudade. Deixou de lado as reflexões. Achou que já era hora.

Fez então o que o rumo leste quase involuntário, quase inconsciente, lhe solicitava para fins de razão. Tão cuidadoso como se deposita pomada em peles feridas, na mesma harmonia e compasso dos dedos disciplinados na composição da nota num violão, repousou com alívio inegável, e até vergonhoso se o fizesse há outonos anteriores, aqueles sapatos. Não espere o leitor que haja uma descrição mais detalhada desse pedaço de material relativamente duro e com brilho no exterior. Era apenas um sapato, como outro qualquer. Desses que se usa com calças formais. Desses que o leitor certamente tem em sua coleção. Sua avó praguejar-lhe-ia umas cinco moléstias antes que fizesse em metros poucos suspiros. Mas o fez, e só ouviu uns dois arbustos inquietos com o ar em movimento se esfregando por entre eles. Talvez sua avó tivesse aquela manifestação para repreender os pés agora definitivamente descalços. Por motivos de conveniência, acreditou que arbustos em polvorosa fossem apenas o que se vê e o que se ouve. Tão simples como os sapatos que deixara para trás sobre o mármore de interior podre.

Agora poderia machucar a pele fina dos calcanhares com os caminhos livres. Se não fossem as milhas já planejadas, seria provável que a liberdade total combinasse mais com o final dessa história. No entanto, não é. Conferiu mentalmente se havia deixado tudo o que queria dentro dos sapatos largados há instantes. Lembrou dos preceitos obsoletos que deixou junto às meias gastas. Disso teve prazer. O que não teve prazer foi da solidão de cheiro tão confortável que forçadamente deixou sobre o mármore. Essa não poderia mais levar consigo, embora fosse tão desejada.

Tocou com os próprios dedos o metal circular de ouro que carregava na mão direita. O mesmo que trocaria de lugar assim que chegasse ao seu destino. Os seus pés descalços trabalhavam para isso agora. Calo após calo.