Ensaio Sobre os Sentimentos.

Posted by Felipe Luna | Posted in | Posted on 07:33



Ao leitor que mais uma semana vem deitar nesse divã, seria apreciável que conhecesse um amigo de longa data. Arquimedes já não nasceu como outro qualquer. Vir ao mundo calado foi uma opção sua só para não se dar ao desfortúnio de chorar tal qual seus semelhantes. Clichês, aliás, são alhos para um vampiro, é o que ele costumava dizer sempre que alguém imitava uma atitude por mera convenção. Pronunciar vocábulos e desfilar argumentos? Tão somente quando lhe eram oportunos. Pouca coisa lhe trazia maior prazer que uma discussão ganha desde o momento que entra. Se não ganhar, é porque não entrou. Talvez por isso que seguiu o caminho das leis e fez do tribunal um templo da consagração do conhecimento, e das orgias ideais. Arquimedes era daqueles que preferem não ter livros em casa. Isso denunciaria uma possível incapacidade de não absorver seus conteúdos. Também não guardava filhos na estante. Esses andam por aí livres de uma presença paterna tão peculiar. Uma esposa nunca foi um sonho de consumo, as amantes sempre lhe foram mais instigantes. Seu coração, digo, seu cérebro sempre foi vacinado contra o vírus sentímentus irracionales. Certamente isso explique sua visão particular do mundo e das pessoas.

Com toda certeza que não é para expandir o seu círculo social, prezado leitor, que eu apresento esse indivíduo. Saiba que eu tenho fins mais didáticos para isso. Imagine você que ao completar certa idade que já o tirava da classe dos jovens, Arquimedes é acometido por uma cegueira branca. Exato, leitor, um branco sem transparência foi a única coisa que Arquimedes passou a ver. Isso já lhe trouxe uma raiva profunda – raiva porque, segundo ele, angústia todo mundo sentiria nessa hora - piorada dias depois, apenas quando soube que uma de suas amantes, que se dispusera a ajudá-lo, também havia se contaminado com a cegueira branca, seguida das duas outras pessoas que passaram a ser o seu universo social: a empregada e o jardineiro.

Imagine também que assim ficaram os quatro. Presos numa jaula chamada casa. Isolados do resto do mundo.

Saramago chegou a sugerir, certa vez, que esse cárcere cego culminaria na desumanização integral dos condenados, ao ponto de as leis, o bom senso, a hierarquia e as diferenças convencionais serem todos esquecidos e submetidos a uma realidade mais cruel e dominadora. Se ninguém vê o que o outro faz, é hora de aflorar o que tem de melhor e pior dentro de si. O que de mais desumano o outro faz, é coisa que não dá mais pra ser vista. Os instintos selvagens e primários derrubariam a cerca delimitadora da convenção social, da moral e dos costumes aceitos. Com tudo isso, o leitor bastante sensível é provável que estivesse a um passo de se sentir envolto num ambiente primitivo, se não fosse a ressalva que segue: Saramago nunca foi apresentado a Arquimedes.

Aos demais, até que orgias e estupros poderiam ser um passatempo bastante interessante, mas Arquimedes viu na cegueira uma forma de vida curiosamente original. O leitor não se assuste quando eu revelar que Arquimedes passou a Amar. Se ninguém vê que ele se rendeu aos sentimentos, por que não sentir? Alguns têm epifania quando vêem folhas de árvore caindo. Arquimedes preferiu ter a sua quando se viu nadando numa piscina de leite. Uma opção semelhante àquela de quando nasceu. E da mesma forma como chorou quando sentiu as palmadas quase violentas do médico, Arquimedes deixou sair uma gota de alguma coisa dos seus olhos que ao que parece é o mesmo que ocorre a algumas pessoas no momento de emoção. Não que ele soubesse o que era emoção. Mas passou a optar por descobrir no momento que se viu livre de qualquer julgamento alheio. Os sentimentos sempre lhe foram o declínio das imposições sociais, e o ápice da primitividade. Agora mais do que nunca!

Lastimável que eu não possa acalmar a aflição do leitor mais ansioso em saber se ele efetivamente descobriu o que é emoção. Arquimedes agora não sabe dizer. Arquimedes desde então prefere apenas sentir.

Comments (4)

"Conversa plagiada"

Que "dom" é esse...
De me prender ao libertar
tuas palavras
e tão somente teus sabores...

Que "dom" é esse...
De rogar sublimes pensamentos
alheios a outros
e intríssecos a tantos...

Que "dom" é esse...
que tanto se esconde
em um Arquimedes tão autero...

Não, não respondas, escrevas, somente...
ensaias no teu divã
e me chamas ao espetáculo.

Nesse divã só entra artista néé?
Tu escreve muito bem, teus textos são Otemos (só li 1 até agora.)
uhauhauhauha
bjO d'Luna.

Muito bem, muito bom!Já havia lido e preferi não comentar antes. Só apreciar.
Dica de leitura:


Ensaio sobre a Loucura- Erasmo de Roterdam.
Se vale a pena? Eu garanto.
Você já leu? Releia!

"... Na terra, água ou ar, com os amigos em qualquer lugar..." diz:

- [...] cada um sente uma coisa totalment diferent dos outros
- as palavras aprisionam o q sentimos e colocam como se fossem os sentimentos, opiniões, desejos, tds iguais
- quando na verdade, cada um pensa d um jeito (diferente), msm q n keira admitir ou "pensar" nisso

Arquimedes deve ter lido o mesmo livro que eu, rsrsrs... Ou, então, baixou no cara que escreveu.